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Crônica

Alvorada dos Antônios

Olha lá, vai passando a multidão, ‘como cobra se arrastando pelo chão’. Não há chapéus nem véu. Não há semblantes nem rosto, apenas silhuetas vistas de longe. Pessoas, gente, um cardápio missigenado servido num prato desbeiçado chamado cultura popular. Não há cheiro nem sabor, apenas a multidão repetindo o que muitos já fizeram através dos anos. Viver as nuances daquilo que a vida nos oferece sem se importar com o que os outros dizem.

Não há como desdizer. Os ingredientes identificam a receita, toda ela ou quase toda genuinamente local. Uma forma festiva de anunciar que as noites antonianas são bem vindas na terra do Rio Pequeno. Uma enchente de gente que invade o leito das ruas quebrando o silêncio, soltando a alegria contida no peito, guardada dia após dias no invólucro da esperança, sem se importar com coisas maiores. Aquilo que as pessoas julgam, interpretam ou deixam de dizer. Cultura é assim mesmo, uma árvore cujas raízes se misturam com os galhos, as flores confundem com os frutos e a salada se perpetua no tempo. Um fazer despreocupado, um olhar despercebido, uma soma sem resultado na taboada das conveniências.

Nesse corre sem pegar, nesse esconde esconde sem se achar, a plebe misturada a elite se reúne e se desloca em delírio, muitos em frenesi, outros em transe sob os efeitos do esquenta peito e o que antes era somente etiquetas se transforma num arrastão desvairado. Legal, claro que sim. O folclore não se define pela cor social, nem pelos costumes do momento, mas por tudo aquilo que se faz de forma espontânea e natural. As pessoas correm, se abraçam, se beijam se declinam sob o pretexto das comemorações, voltadas para o padroeiro que tudo assiste com a supimpa vontade de dizer “perdoai, Pai. Eles não sabem o que fazem.”

Será? Se em coração de gente não se sabe o que tem, imagine no coração dos que sacrificaram a vida por causas nobres e humanitária. A alvorada de Santo Antônio chegou ao Vale do Paramirim quando os portugas aqui aportaram de mala e cuia para explorar o ouro e cultivar as fazendas banhadas pelas águas desse abençoado caudal. Criou raízes, cresceu e frutificou, embora repaginada no correr dos tempos pelas invencionices de seus protagonistas. Mas como diz o poeta tudo na vida vale a pena quando a alma não é pequena. Aqui no Vale vale a pena lembrar que se não somos os primeiros nem os melhores, disso temos convicção, somos os mais festivos. Nas assas das cantigas e dos saracoteios vamos de alvorada em alvorada passando o tempo, ganhando notoriedade, vivendo para o hoje, até porque se muito não temos é porque não queremos.

Enquanto isso, o cortejo se desloca, os foguetes se repetem, a madrugada rompe-se e a multidão em polvorosa, ao som das gaitas e do zabumba, chega ao seu destino para subir ao pódio. As vibrações se multiplicam. Quantas histórias pra se contar. Quantos lances pra se comentar. Gente que há muito não se via, vozes que não se ouviam, encontros e reencontros, caminhos trilhados, cenas compartilhadas, amizades reatadas, tudo isso estampado no slogan a vida é pra ser vivida.

Olha lá a alvorada de Santo Antônio! Abertura oficial dos festejos do Santo padroeiro de Paramirim. Retalho colorido da cultura lusitana. Prefácio de uma narrativa que desenrola no tempo e no espaço tendo como foco original a humilde capela erguida no mesmo leito da atual matriz, marcada pelo clamor, as lágrimas e a dor de uma raça que gritava por liberdade. Gente humilde, síntese de batuques, modinhas e delírios na eterna lamúria do ontem, do hoje e do sempre. Sons, cores, ações. Metal volátil entranhado nas manifestações culturais de sucessivas gerações que a cada passar de ano se funde, se transforma para ressurgir a cada temporada com novos protagonistas, unindo o sagrado e o profano, repetindo o sopro, os passos e os sons de quem vive para viver um novo dia.

DOMINGOS BELARMINO detém vasta experiência na área educacional como cronista, palestrante e historiador, possui um acervo de mais de cinco mil documentos sobre a história de Paramirim, 27 anos dedicados a história regional. Atualmente é Secretário Municipal de Educação de Paramirim.

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