Opinião
Mesmo que não pareça, covid-19 ainda é covid-19
Confesso ter resistido em começar a teclar, por entender que minha simples opinião “não inflói nem contribói” — para citar o finado escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, que com essa expressão respondeu ao ser questionado sobre a reforma ortográfica.
Escrevo, porém, por sugestão de um amigo; alguém que, como eu, tem acompanhado diariamente, e com preocupação, o agravamento da crise epidemiológica em nossa região.
Discutindo com esse amigo os supostos motivos pelos quais as pessoas estariam reduzindo os cuidados justamente no pior momento da pandemia, apresentei minha impressão: para elas, as palavras estão perdendo seus significados.
Quem me conhece de perto sabe do meu apreço pelo estudo da Língua. Não poderia, portanto, deixar de traçar paralelos entre ela e as mais diversas situações cotidianas.
Há mais de um século, linguística e psicologia estudam um fenômeno cujo nome é pouco conhecido, mas que representa uma experiência comum a todos nós: a saciedade (ou saturação) semântica, em que a rápida e contínua repetição de uma palavra, seja visual ou oralmente, faz com que ela perca o sentido para o visualizador/ouvinte.
Nessa situação de “estresse”, o cérebro deixa de reconhecer o elo entre o significante e o significado, ou seja, entre a palavra e a imagem mental da realidade a qual ela se refere. A grafia torna-se um conjunto de sinais aleatórios e a pronúncia converte-se numa sequência de fonemas desconexos.
O leitor deve estar se perguntando aonde quero chegar com isso. É que penso estar acontecendo algo semelhante com as pessoas em relação às palavras “covid-19”, “coronavírus”, “pandemia”, “respirador”, “UTI” e diversas outras.
Um ano atrás, a notícia de que algum morador do município estava numa Unidade de Terapia Intensiva causava angústia em quase todos os outros. Hoje é recebida naturalmente.
Em 7 de abril passado, há exatos 300 dias, a Secretaria de Saúde local confirmava o primeiro caso de infecção pelo novo coronavírus. Já estava entre nós aquele terrível mal do qual antes ouvíamos falar apenas pela televisão e que imaginávamos nunca chegar à nossa pacata cidade. Recordo-me muito bem do impacto que esse anúncio provocou na opinião pública. (Quase) todos passaram a se preocupar com suas famílias. Conheço gente que não saiu de casa por mais de uma semana.
Mas os dias foram passando, veio o segundo caso, depois o terceiro… Confirmados, ativos, curados… As atualizações do boletim já haviam se tornado parte da nossa rotina.
Um mês depois, em 9 de maio, quando tudo parecia ter voltado ao normal, eis que é registrada a primeira morte em decorrência da doença. A ficha novamente caía. O vírus havia matado um conterrâneo. A solidariedade à família enlutada foi unânime. A preocupação voltou a aumentar.
Essa reação, contudo, também durou pouco. Tanto é que, de lá para cá, a covid-19 fez outras oito vítimas, e não percebo mais comoção coletiva. Claro, ainda há pessoas preocupadas e precavidas, como no início, mas são poucas. Quase todas já estão “anestesiadas”, cansadas de ler ou ouvir sobre a pandemia. E é natural que estejam. Neste momento, praticamente todos os sites de notícias do país exibem em suas homepages alguma manchete sobre o tema, e diariamente todas as principais emissoras de rádio e televisão dedicam ao assunto longas horas das suas programações.
Nesse fim de semana, pude ver em minhas redes fotos de diversas confraternizações; reuniões de pessoas que, na contramão de todas as recomendações (e determinações legais), colocam em risco a si próprias e aos demais. Não pensam mais na possibilidade de haver entre elas algum caso assintomático.
Nesse fim de ano, netos que há tempos não visitavam os avós resolveram ser amorosos levando-lhes alguns Sars-Cov-2 de presente.
Pessoas que não iam a pé de casa ao supermercado tornaram-se turistas na pandemia, mais precisamente após decretos proibirem o turismo.
Como recentemente noticiado pelo Paramirim Agora, já faltam leitos de UTI no sudoeste do estado. Pacientes que necessitam de suporte avançado estão sendo encaminhados para o oeste ou para a capital. Mas dessa vez a ficha não caiu.
As palavras perdem seus significados pela repetição, mas covid-19, mesmo que não mais pareça, continua sendo covid-19.
Cuidemos.